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A minha criança em Parangolé

  • Foto do escritor: haryane santos
    haryane santos
  • 21 de mai.
  • 8 min de leitura

Atualizado: 7 de jun.



Tema: Odisseia à nostalgia


Minha visão não era embaçada; ela era muito clara sobre o futuro — talvez uma visão infantilizada, mas tinha clareza, tinha certeza. Porém, coberta pelo filtro da infância, protegida pela ingenuidade. Essa é a melhor parte, e lamento que tantas crianças que vivenciam guerras e outras formas de violência não tenham a chance de experimentar algo assim.



1. Intenção e propósito

O projeto consiste no desenvolvimento de uma peça para a cabeça que represente nossas lembranças de quando tínhamos oito anos. Essa mesma cabeça serve como disparador para o Parangolé que será usado no corpo, como forma de representação dessa mesma infância — mas com o olhar de quem somos agora.


2. Referências e repertório


"No contexto da arte brasileira, o termo Parangolé refere-se a uma forma de arte performática criada por Hélio Oiticica. Trata-se de capas, bandeiras ou estandartes confeccionados com diversos materiais — como tecido, plástico, entre outros — que são vestidas e movimentadas pelo corpo do participante, transformando-o em uma obra de arte em movimento" (Google, s.d.).


3. Materiais e meios


Cabeça: arame; cola quente; fitas de cetim (cores mais terrosas); tule de armação (branco); mini flores bordadas, recortadas de uma cambraia; cola de silicone; correntes e strass, retirados de uma velha pulseira de couro.


Parangolé: tule; elástico de 5 cm; tinta Acrilex para tecido; tinta de parede preta.


Música: A Suíte para Violoncelo n. 1 em Sol Maior, BWV 1007, compositor alemão Johann Sebastian Bach 


4. Pesquisa e contexto


Iniciei o projeto da minha peça pelo desenho da cabeça. Mentalmente, encontrei várias maneiras de representar essa criança da minha infância. A primeira coisa que passou pela minha mente foi como, na minha infância, tudo parecia flores — e os sonhos não eram apenas possibilidades, eram também totalmente reais, possíveis e fáceis de se concretizar.


Minha lembrança mais vívida naquele momento era uma casa de lona que construí no quintal da casa dos meus pais e que ficou montada por vários dias, até minha mãe decidir que não era mais apropriado manter aquele trambolho ali. Mas, durante a construção, eu pensava que, se enquanto criança eu já conseguia construir a minha própria casa, imagina o que eu não conseguiria quando fosse adulta.


Compreende o nível da ingenuidade da minha criança, considerando todas as dificuldades que enfrentamos enquanto adultos, especialmente em um país com tantos obstáculos para a equalização social?


Prometo que meu projeto não se prendeu à política, mas acho importante pontuar que o Parangolé, como obra original de referência, é um movimento totalmente político. Então, não existe a menor chance de eu conseguir desvincular totalmente a minha criança do contexto social envolvido nesse desafio e na minha vida, enquanto mulher adulta tentando reestabelecer conexão com essa mesma criança.

O primeiro desenho da cabeça
O primeiro desenho da cabeça

Meu primeiro rascunho vivenciava de maneira muito despreocupada e até um pouco fútil a imagem das minhas lembranças infantis: uma tiara com pensamentos saltantes, vibração em cores fortes e muita oportunidade de criação. Mas era, sem dúvida, uma ideia preguiçosa, com poucos elementos que realmente pertenciam a mim. Aquela tiara pertence a todas as crianças, mas tinha pouco da singularidade da minha criança.


A primeira ideia do Parangolé também tomou o mesmo caminho: pedaços de retalhos presos a uma cintura marcada por um cinto com referência política. Muito sobre como me sinto hoje, mas não do ponto de vista apropriado para esse projeto. Certamente, não reflete o que visto hoje enquanto indumentária emocional; não seria correto reproduzir a primeira ideia — na minha opinião.

O primeiro croqui do Parangolé
O primeiro croqui do Parangolé

Fui para casa frustrada, chateada comigo mesma e questionando a minha criatividade, mas também focada em encontrar algo realmente relevante para a identificação daquela criança, tanto na cabeça de arames (disparador) quanto no Parangolé.


Comecei a repensar tudo o que me levou à primeira ideia. Pensei sobre a minha visão simplificada do mundo durante a infância e como poderia representar isso de uma forma melhor. Então, para o disparador: comecei a pensar em arcos como se fossem várias linhas de visão, mas de maneira muito simplificada para quem usa. Eu precisava que fosse simples para conseguir refletir a minha visão infantil da vida.


Minha visão não era embaçada; ela era muito clara sobre o futuro — talvez uma visão infantilizada, mas tinha clareza, tinha certeza. Porém, coberta pelo filtro da infância, protegida pela ingenuidade. Essa é a melhor parte, e lamento que tantas crianças que vivenciam guerras e outras formas de violência não tenham a chance de experimentar algo assim.


Sobre o Parangolé, devo dizer que, depois de descartar a primeira ideia e antes de encontrar o meu caminho, desperdicei muito tempo tentando criar algo com referência externa, tentando comunicar o Parangolé conforme a possível expectativa de quem fosse “avaliar”. Passei muitas horas e dias tentando adivinhar o que o público gostaria de ver e fazendo contorcionismo para conectar aqueles croquis à minha história. Mas, por sorte, consegui me fazer a pergunta certa antes de executar qualquer coisa: desde que seja genuíno e realmente faça parte de mim, quem liga para o que os outros vão pensar?




Depois de responder sinceramente à minha pergunta interna, o Parangolé veio de maneira muito mais natural e fluida; foi basicamente um reflexo de tudo. A cabeça realmente veio como disparador.


5. Experimentação


Os problemas começaram a surgir quando decidi que os arcos da cabeça precisavam se manter fixos, com um espaçamento entre eles, mas que permanecessem imóveis — e fiz de tudo para que isso acontecesse. A princípio, pensei em uma espécie de filtro que poderia muito bem ser representado por um tule, mas, quando fixei, me remeteu a um capuz de apicultor. Resolveu o meu problema de espaçamento, mas acabou gerando outro.




Pensei em fixar os arcos com cola, mas fiquei com medo de não funcionar, porque pretendia cobrir com fitas. Então, tentei uma alternativa menos definitiva, mas que poderia funcionar: criar entre os arcos um espaçamento feito com vários nós de fita, porque também não queria nada tão fixo que precisasse de uma solda.


O problema foi resolvido, mas acabou surgindo outro: eu.


Mudei de ideia, não queria mais que os arcos ficassem fixos; queria flexibilidade, movimento, possibilidades, liberdade para a cabeça. Então, os arcos não podiam mais ficar ali. E aí foi uma “onda muito louca”, porque eu não tinha ideia de como fazer os arcos conseguirem flexibilidade e liberdade sem que tudo virasse um amontoado de arames caindo de uma vez.



Na hora, pensei em usar elástico na lateral para flexibilizar esse movimento, mas não funcionou — os arames não tinham força suficiente para fazer o elástico ceder o espaço que eu precisava. Foi então que decidi só cobrir os arames com fitas de cetim, em tons claros, e deixei essa peça temporariamente de lado, porque ela não estava mais me fazendo feliz.


Depois de um tempo, quando decidi retomar a peça, minha mente parecia mais arejada, mais tranquila, e consegui a solução perfeita, que inclusive consistia em retomar a ideia inicial com o tule, mas de uma maneira diferente, que não me remetesse ao capuz de apicultor. Também acrescentei algumas pedrarias e correntes na frente da peça, para dar a impressão de tiara de criança quando os arcos estivessem fechados.



O abrir e fechar da viseira na cabeça é o ato de revisitar a infância e voltar a enxergar o mundo com outros olhos.


O tule já fazia parte da cabeça, e eu estava confortável com a ideia do tule ser a “chave” do Parangolé. Foi muito natural chegar na estética da saia de bailarina, porque, no momento em que vi o tule, tudo fez sentido para mim.


6. Escuta e revisão


A primeira vez que considerei a peça pronta, ainda fiquei muito incomodada com algo que não sabia como explicar — só tinha em mente que faltava alguma coisa, mas não tinha certeza do quê. Pensei em incluir um bordado como algo infantil ainda presente na fase adulta, também pensei em intensificar os tons coloridos, mas nenhuma dessas ideias me fez ter sensação de finitude.



Quando a Tuane provou a peça pela primeira vez, senti como se não faltasse mais nada, mas foi momentâneo. Depois de alguns minutos, me perguntei se não dava para “melhorar”, se não dava para fazer algo que realmente me desse a sensação que eu esperava sentir. Nada me ocorreu imediatamente.


Tuane Osaida, atriz, performer e aluna da SP Escola de teatro
Tuane Osaida, atriz, performer e aluna da SP Escola de teatro

Tudo mudou no processo de escrita deste texto. Enquanto escrevia a primeira parte, senti que sabia o que precisava fazer. Fechei o computador, peguei a minha peça e fiz uma “festa” com tinta preta.


Agora sim, cheguei onde eu precisava chegar!


7. Coerência interna

 

A cabeça representa o meu olhar infantilizado: os arcos são as possibilidades infinitas, e o espaço entre eles me permite ter um olhar infantil sobre o mundo. O tule recobre a cabeça, representando o filtro dessa visão, que impede que eu veja o mundo como ele é. As laterais, com ornamentos em flores simbólicas, trazem o meu primeiro momento com o desenho, quando, com o lápis, na minha infância, tudo eram flores — não só simbolicamente, mas também na prática, já que desenhar flores foi a primeira coisa que aprendi a fazer com o lápis.

 

Prova do Parangolé, antes da intervenção com tinta preta


O Parangolé é a representação de uma bailarina, porque foi a minha realidade dos oito aos dezoito anos de idade. O tule não está relacionado apenas por ser um tecido clássico usado nos figurinos de dança, mas também por ser um dos materiais com que mais tive contato ao longo da vida. No ateliê de costura da minha mãe, o tule era uma das principais matérias-primas, já que ela costurava para algumas companhias de dança.


As manchas de tinta coloridas, jogadas no tule com um pincel, me trazem um pouco da criança que já fui um dia, ao passo que as manchas pretas representam um pouco da confusão e da seriedade da fase adulta. Ambas são jogadas de maneira aleatória na “tela em branco”.


A faixa em volta do decote representa um laço desfeito, um laço que já foi infantil, uma lembrança presente que continua presa na peça porque ainda faz parte de mim — não mais da mesma forma. No laço desfeito, ainda é possível ver desenhos infantis em uma das pontas, desenhos que se assemelham aos que se encontram nas paredes de casas onde há crianças, como na parede da minha casa. Essa também é uma referência ao que ficou para trás, ao que passou, mas que continua na peça, porque, mesmo sendo algo do passado, ainda é parte de quem eu sou.



8. Afeto e autenticidade


O figurino precisa falar, pode ser uma fala sutil ou um grito, mas precisa falar. Mesmo quando não existe uma explicação ou um roteiro revelando cada aspecto, o figurino traz consigo uma identidade passível de interpretação, sujeita ao olhar do outro, que se revela individualmente, totalmente dependente das “bagagens” pessoais, das referências individuais.


Meu processo criativo te leva ao meu norte pessoal — como cheguei em cada detalhe, como tomei as decisões e como concluí dentro de mim e na peça as minhas intenções —, mas também reflete como tudo isso ecoa em cada observador. O seu eco pode não se relacionar com o meu, e não existe problema algum nisso, é maravilhoso!


Então, eu te convido a observar sem se prender ao meu processo, apenas tentando entender como esse Parangolé ecoa em você.


Um beijo,


Haryane Santos




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