O poder da moda e de seus produtos exclusivos
- haryane santos
- 1 de set. de 2023
- 7 min de leitura
Atualizado: há 1 dia

Existem duas coisas que a indústria da moda faz com a gente: a primeira é que ela segrega as pessoas, separa a moda por status, das lojas mais baratas e acessíveis às maisons de alta costura em Paris; a segunda também é sobre segregação, mas tem a ver com os lugares que você frequenta porque, para cada tipo de roupa, existe um lugar, e alguns lugares simplesmente não são acessíveis a todas as pessoas. E por causa disso talvez você já tenha pensado que algumas roupas não são para você, porque você não teria onde usar.
Esses são os dois feitos infalíveis da indústria da moda, porque é muito importante manter a exclusividade de algumas marcas para que elas possam continuar faturando números monetários exorbitantes com clientes que pagam o que for necessário para se sentirem especiais e exclusivos. Sinceramente? Não vejo nada de errado nisso, mas me incomoda muito perceber que eu, além de estar no final dessa “cadeia alimentar”, sou o resultado involuntário de regras estabelecidas lá no topo dessa pirâmide, ou seja, altamente manipulada.
Como eu sei disso?
Porque eu não tenho como comprar roupas de grife, mas o desejo de ter peças exclusivas ou da moda é o resultado dessa máquina de manipulação. Eu faço parte dessa indústria tanto quanto você, seja você uma compradora dessas marcas de luxo ou uma “mortal” assalariada que não pode ter, apenas desejar. Ambas as personalidades são importantes, uma não vive sem a outra. Você pode até discordar de mim quanto aos seus desejos, mas duvido que discorde em relação ao todo. Sabe quanto custa a bolsa saco de lixo da Balenciaga? R$10.000,00. SACO DE LIXO! Porra, tá de brincadeira comigo?
Ninguém me contou, eu vi o desespero de algumas influencers para adquirir esse item e você, aposto que você, o(a) influenciado(a), também ficou pelo menos curioso(a) sobre essa bolsa. SACO DE LIXO! Pelo amor… SACO DE LIXO!
Aprender a costurar, em parte, tem a ver com todo esse desejo por exclusividade estimulado pela indústria da moda e já costurei algumas dezenas de vestidos para que um dia, em lugar apropriado, eu pudesse usar. O dia não chegou e já vendi ou doei os vestidos que, em sua maioria, nunca usei. Então, resumindo: eu faço parte de uma massa que precisa desejar coisas que não pode ter e, mesmo quando, no meu caso, consegue produzir algo similar, ainda não vai encontrar um lugar para usar. Tudo isso para que uma minoria abastada possa se sentir exclusiva por poder adquirir e vivenciar o que a maioria de nós não pode.
Não me entenda mal, não sou contra a indústria da moda, fashionistas, influenciadoras, marcas de luxo ou o poder que exercem. E no que diz respeito ao poder: só o possuem porque eu e você demos. Toda vez que desejamos uma peça que não podemos ter, estamos dando poder a eles; toda vez que você não usa uma roupa porque não frequenta um lugar apropriado, também está dando poder. Se a moda fosse realmente democrática, nós não nos sentiríamos mal ou deslocados em lugares luxuosos e não ficaríamos desconfortáveis por se arrumar demais para ir a uma padaria ou qualquer lugar possível dentro do nosso meio social.
“Suas roupas não são compatíveis com a vida que você tem, você deveria repensar a forma como você se veste porque ela não combina com a sua realidade.”
Ouvi essas palavras na minha adolescência, enquanto aprendia a dar meus primeiros pontos na costura. Claro que eu entendo a intenção de “sabedoria” que essas palavras continham. A pessoa que direcionou essas palavras a mim era mais velha, mais vivida e provavelmente entendia o mundo exatamente como somos “levados” a entender.
Eu lembrei disso porque recentemente uma amiga falou algo parecido a respeito de si mesma.
Ela disse: “...E a gente sempre compra roupas para a vida que a gente quer ter. É uma vida que a gente não tem”.
Que injusto!
Por não termos a vida das fotografias do Instagram, então estamos socialmente impedidos(as) de usar o que queremos? Parece que sim, se levarmos em consideração todas as regras impostas, tanto na estética das roupas quanto aos tipos de corpos, mas também em relação à logística de onde é adequado usar cada peça.
Ninguém usa um vestido de noiva para fazer atividade física, mas se usasse, o que você teria com isso?
Quanto mais inserido nas regras sobre o vestuário, mais especialista nos sentimos e se “somos” especialistas, então “estamos” aptos a julgar, certo? ERRADO! Cuida da tua vida, cacete! É por causa de todos esses “especialistas” que o meu vestido de paetê nunca foi tomar um café com pão de queijo na padaria.
Sim, admito que me deixo levar pelo medo de me sentir ridícula ou inapropriada em alguns ambientes e entendo as palavras da minha amiga quando fala sobre a vida que não temos. Em que circunstâncias uma padaria seria adequada para o meu vestido? Já sei, só nos bastidores de Sex and the City, mas apenas se você for a Sarah Jessica Parker.
Tá vendo onde eu quero chegar? Pelo amor de Deus, me ajuda aqui. Estou doida para me rebelar contra todas essas regras e viver com “purpurina saindo pelo nariz”. De onde surgiram tantas regras “absolutas", quem decidiu isso? “Não combina”, “não combina com o seu corpo”, “não combina com o ambiente” e o pior de todos: “não combina com a sua vida”. PARA!
Eu, recentemente, por razões que vou explicar em um próximo texto, comecei a colocar meus vestidos para “jogo”, longos com bastante tecido e perfeitos para quem anda de carro, só que eu não tenho carro, ando de ônibus e metrô e, por muito tempo, esse foi um dos motivos para eu viver de legging e camiseta. Mas, “influenciada” (sim, eu faço parte do bolo dos influenciados) por tantas séries fashionistas e a Carrie Bradshaw, que também usa o metrô e não tem carro, decidi começar a minha rebelião e tentar viver como se a vida fácil de um seriado fosse a minha.
E é difícil porque ter como referência um seriado não ajuda, já que não é real, e esse é exatamente o problema. Usamos referências irreais em nossas vidas: influencers, personagens de filmes e seriados, cantores, atores, contos de fadas, literatura…
Comecei a questionar toda a influência que eu sofro dessa indústria, mas só a reflexão não é suficiente para mim, porque mesmo me dando conta de que os meus desejos não saciados por alguns produtos são parte de um plano muito bem elaborado para enriquecer algumas marcas, ainda tenho dificuldade de me desprender da opinião das pessoas que, como eu, também são especialistas em NADA sobre moda, mas se pronunciam como se fossem.
Eu gosto de costurar e aprendi principalmente porque queria usar as roupas que via nas novelas e nas revistas que a minha mãe recebia no ateliê dela, eu queria ser aquela protagonista que está maravilhosa e perfeitamente alinhada no conforto de sua casa, mas se você me visse agora, ficaria horrorizada com o meu cabelo sujo, meu rosto não maquiado e uma roupa velha que eu adoro e uso quando estou em casa, sem falar que, enquanto escrevo, não tem uma taça magnífica de vinho italiano à direita do meu computador (tudo bem que o vinho era até fácil de resolver). O ponto aqui é que não é apenas sobre as roupas fotografadas que não podemos comprar, mas também sobre o estilo de vida que é impossível bancar.
Se você acompanha as influencers fashionistas em suas casas incríveis e suas rotinas invejáveis, provavelmente já percebeu que aquela decoração clara e limpa é resultado do trabalho de uma faxineira que a gente não tem. Não sei você, mas eu tenho que lavar a minha louça e varrer o meu chão. E quando vou fotografar uma roupa que costurei para inspirar as minhas alunas no mesmo caminho, eu preciso afastar a bagunça para o lado porque ainda não tive tempo, ou vontade, de arrumar tudo.
E você que é mãe e se sente insuficiente porque vê aquelas mães sendo aparentemente incríveis em sua trajetória materna, eu preciso te contar: elas têm muita ajuda e provavelmente não fariam metade do que você faz se não fosse assim; e as mulheres com jornadas infinitas, aquelas que além de serem mães, são também esposas, donas de casa e profissionais, essas também têm ajuda, uma equipe de babás para a maternidade, assistentes para os assuntos domésticos, assistentes nos assuntos profissionais e um marido que não precisa vê-la descabelada porque ela tem tempo para se produzir.
Tudo o que nos rodeia foi projetado para nos dizer que aquilo que vivenciamos no nosso dia a dia não é suficiente para sermos felizes; tudo o que você curte nas redes sociais foi projetado e programado para que sua infelicidade seja o combustível motivador para que quem tem recursos continue pagando por exclusividade. Quem paga caro por exclusividade se envaidece em saber que outras pessoas simplesmente não podem ter aquilo que almejam.
Ouvi uma vez uma pessoa falar: “Eu quero que tenham inveja de mim, quero ter o que ninguém tem”. Essa é a mesma pessoa que, meses depois, eu descobri que não dava férias às funcionárias da casa dela, mas que as obrigava a assinar como se recebessem. Não estou dizendo que todo mundo com potencial de compras exclusivas faz esse tipo de coisa com seus funcionários, mas é inegável que quem compartilha dessa necessidade de exclusividade tem uma “tendência” a se deleitar com a ausência de algumas coisas na vida dos outros, ou seja, se é exclusivo para mim significa que o “outro” não tem.
Isso é exclusividade: o potencial de adquirir coisas em detrimento das pessoas que não podem possuir.
Será então que exclusividade é um nome sofisticado para egoísmo ou ganância? Não tenho essas respostas, queria ter, mas não tenho. Tudo o que disse aqui tem mais a ver com questionamento, reflexão… Será que sim? Será que não? Questione também.
Uma vida desejando coisas que não precisamos, mas que queremos porque somos levados a isso, não pode ser uma vida boa. E viver bem, além de não ter preço, é algo que ninguém pode te negar, só você. É preciso parar de associar felicidade com consumo ou coisas materiais e começar a viver a poesia do dia a dia, que nem sempre é fácil, mas vale a pena, eu garanto.
Enquanto isso, eu vou seguindo aqui costurando minhas roupas, tentando me libertar das regras e normas e usando o que eu quiser, sempre que me der vontade, menos o vestido de paetê na padaria (ainda não tô pronta para isso). E talvez os meus dias continuem normais, com louça na pia e banheiro para lavar, mas se tiver um encontro com as amigas vou caprichar no glamour, com as roupas que eu costuro para mim, mesmo que eu vá e volte de metrô, porque eu me recuso a fazer o papel de “faminta” para uma indústria que apenas me usa, mas não me beneficia.
Beijos!
Haryane Santos
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